
O Fado, 1910, José Malhoa
Estilística:
Esta obra apresenta um conjunto de cores bastante distinto e um
volume dos elementos também diferentes. Verifica-se na
globalidade do quadro, uma predominância de cores quentes
de tom escuro como o castanho (do soalho, dos quadros, dos móveis
e da guitarra) e o negro presente no cabelo das duas figuras (tipicamente
portuguesas), no xaile, nas calças e restante roupa da
figura masculina, nas socas e nos sapatos, na porta escondida
em parte pela cortina, no candeeiro a óleo e nas zonas
das margens esquerda e direita. Também outros elementos
que parecem ter menos destaque têm cores pouco claras, na
parede os tons de azul predominam mas é um azul muito “gasto”
com alguns espaços a cinzento (cor do cimento), devido
à tinta estar a cair, a própria cortina tem tons
pouco claros. Estes elementos mais escuros são os que aparentam
menor volume por estarem mais em perspectiva, apesar de haver
excepções como a guitarra (que por ser muito importante
para a composição é tocada por uma figura),
ou mesmo as roupas das figuras, a mesa e o banco que devido a
estarem próximos dos elementos mais importantes da composição
(as figuras), também têm maior volume.
Em contraste com este conjunto de cores escuras são visíveis
com mais facilidade as cores claras da composição
que acabam por apresentar maior volume na tela. As figuras têm
cor de pele em tons de branco e amarelado (a figura feminina é
a mais clara). É nas figuras que as cores se destacam mais,
especialmente a figura feminina que com a sua pose demonstra um
volume não igualado na composição. As cores
claras predominam em torno da figura feminina. O branco é
assim uma cor que se destaca com grande ênfase, na blusa
dela que ostenta um volume considerável (com a intenção
de desarranjo), mas também na toalha pendurada, na bacia,
na cómoda, nos postais e no espelho da cómoda.
A cor com maior ênfase na tela é sem dúvida
o vermelho da saia (ou baeta), que torna a figura feminina no
núcleo da composição. A saia conjuntamente
com a mulher é também o elemento com maior volume
na composição de Malhoa. A própria pose alargada,
de desarranjo que a mulher ostenta e se parece espraiar na tela,
é indicador desse volume espantoso que ocupa grande parte
do quadro. A posição da sua mão com o cigarro
e a face torcida apoiada na outra mão também demonstra
esse volume único (de uma mulher forte fisicamente).
O vermelho e os seus tons são também visíveis
na cómoda, nas flores e manjerico, na gravata da figura
masculina, na cortina e nas bandarilhas que têm tons avermelhados.
A própria cara do elemento masculino apresenta tons avermelhados
devido ao vinho. Aparecem elementos com cores menos claras especialmente
na figura masculina que apesar de não ter a relevância
da outra figura (quer no volume, quer no tema), também
tem um volume considerável na composição,
sendo o segundo elemento com mais volume (pois canta o fado para
o outro elemento).
É fácil perceber assim, que quanto mais em segundo
plano estão os elementos, mais escuros e menos volume eles
apresentam (com a excepção do espelho). Também
a parte direita do quadro encontra-se bastante mais escura que
a esquerda (que têm a mulher e o espelho, elementos muito
importantes na obra), ainda mais que o elemento masculino onde
se destaca a guitarra portuguesa.
A pintura tem muito poucos lados abandonados ou sem elementos,
ela está impregnada de elementos seja em primeiro plano
seja em segundo plano, todos os elementos fazem parte do tema
que será abordado no tópico seguinte.
Como é possível verificar pode-se considerar que
neste quadro existe um primeiro plano e um segundo plano menos
relevante. Em primeiro plano estão as duas personagens
que ocupam uma função central (estando no centro
da composição) e estão situadas em conjunto
com a mesa e o banco, à frente de qualquer outro elemento.
Apesar de haver um equilíbrio ao nível dos elementos
na composição, dá a sensação
que se verifica um desequilíbrio em relação
às cores, que são mais vivas no lado direito para
acentuar a importância da mulher e do espelho. Neste primeiro
plano, homem e mulher parecem estar em simetria um de um lado
e outro de outro. O espaço ocupado é central estando
as personagens no meio do quadro quer horizontalmente quer verticalmente.
Em segundo plano estão todos os outros elementos que em
perspectiva são colocados como cenário envolvente.
A parte superior do quadro parece estar mais sobrecarregada destes
elementos pequenos e pouco definidos, a parte inferior tem menos
e nenhum do mesmo tipo dos outros. O carácter central do
primeiro plano contrasta um pouco com uma maior distância
do segundo plano, que está completamente relacionado com
o primeiro, mas que tem menos relevância. Mesmo o segundo
plano encontra-se com algumas simetrias que caracterizam a tela,
como é o caso do espelho na parte superior esquerda, que
corresponde ao leque na parte superior direita (apesar deste ser
mais esbatido), e a toalha também oferece um efeito de
simetria pois encontra-se entre as figuras no centro da composição.
O espelho da cómoda, embora localizado num segundo plano
é importante na composição, é por
isso que se destaca lá por trás com a claridade
vinda de uma janela reflectida pelo espelho.
A organização icónica deste quadro, é
bastante perceptível para o admirador devido à diferente
colocação dos elementos dispostos na tela.
Temática:
O título deste quadro de José Malhoa é O
Fado, apesar de em exposição por outros países
ser designado de maneira diferente. Ainda em 1910 no Salão
de Outono em Paris, a obra teve a designação de
Sous le charme, de seguida esteve na Argentina, sempre com adaptação
de nome, Sera Verdad? (onde foi premiada) e posteriormente em
Inglaterra recebeu a designação de The Native Song
(apesar de estar em numerosas exposições estas foram
as designações que se mantiveram).
Ora, sem dúvida que há uma relação
entre o título O Fado e a imagem, essa relação
é de tal forma estreita que o motivo do quadro é
sem dúvida o seu título. O único motivo das
adaptações que se fizeram no panorama internacional,
foi como interroga Paulo Osório devido à “possibilidade
da obra não ser compreendida pela crítica local,
ignorante de fados”. A canção portuguesa parece
estar representada na imagem da maneira mais característica,
respeitando as suas origens. As personagens e o ambiente que as
circunda têm tudo a ver com o fado. O fado é o motivo
deste quadro, representando não só o tom melancólico
como a canção que o inspirou, mas toda uma sociedade
de classe baixa portuguesa que raramente era representada em obras
de arte na altura. Este quadro é assim claramente, um retrato
do fado e da sociedade urbana que lhe está adjacente (como
se verificará melhor mais à frente no trabalho).
Todos os elementos que foram referidos no tópico anterior,
acabam por ser símbolos dos costumes da época, estando
enquadrados com o ambiente íntimo e sórdido que
se vive no quadro. Os elementos mais característicos constituem
símbolos dos costumes e da alma portuguesa. Elementos como
a guitarra (símbolo mais próximo do fado), o vaso
do manjerico (símbolo lisboeta), o leque e as bandarilhas
(enaltecendo a tourada que também está ligada ao
fado), o registo do Senhor dos Passos (símbolo de religiosidade
dos portugueses), são símbolos portugueses por excelência.
O símbolo mais significativo é o espelho que está
partido com uma chinelada de Adelaide “da Facada”
(figura feminina), colocado numa cómoda também tipicamente
portuguesa reflecte o “avental-de-pau de meia porta”(expressão
da altura), a cadeira de espera e o sol proveniente de uma janela
que parece simbolizar a paixão, expressa na generalidade
da obra de Malhoa, do autor pelo sol e pela luz que aqui está
praticamente escondida, mas que tem uma qualidade única,
intimista e pictural. Surgem outros elementos como a garrafa,
o copo, o cigarro na mão de Adelaide e outro na orelha
do cantor, que demonstram que o assunto é pitoresco e os
vícios estão presentes, bem como o ambiente melancólico
fadista que dá título ao quadro. As socas de Adelaide
(descalçadas), o soalho em madeira, o candeeiro de petróleo,
os postais na parede, o xaile, a bacia e a toalha pendurada no
cabide, a moldura dos quadros, a tinta a cair, a cortina junto
à porta, a mesa, os bancos, e o pano na cómoda,
são elementos menos relevantes, mas que acabam por se integrar
no contexto da obra e demonstrar o realismo do quadro. Todos os
elementos transmitem-nos a ideia de fado e da sua tristeza e melancolia
adjacente. As personagens têm grande simbolismo, a forma
como estão vestidas, as suas feições e posições
simbolizam não só esse facto cultural que é
o fado, mas também toda a vida boémia e ao mesmo
tempo melancólica. São uma representação
dos costumes da classe baixa da época e por isso são
personagens-tipo do país, da cidade e da zona (Mouraria).
Assim se demonstra não só os símbolos e
elementos do quadro como a relação entre título
e imagem.
Escrito por: João Tomé
Fonte: http://ofadodemalhoa.no.sapo.pt